Os ambientalistas, em sua maioria, não possuem restrições ideológicas ou conceituais às hidrelétricas. O que questionamos com vigor é o modelo de desenvolvimento a partir do qual elas são concebidas.
As acusações de que somos “inimigos” das hidrelétricas são originadas de dirigentes do setor elétrico, das grandes empreiteiras e das empresas de consultoria fabricantes de EIA-RIMAs. Lamentavelmente são acusações inverídicas que encontram apoio e voz na grande mídia.
Há muito que os ambientalistas são acusados de “atrapalhar” o desenvolvimento. Isto não é novo e o setor energético especializou-se em nos acusar de impedir a patriótica expansão do setor.
O setor elétrico, em defesa da indústria eletrointensiva, pesadamente subsidiada, sempre tentou desqualificar os órgãos ambientais e os ambientalistas. Afinal, é mais fácil desqualificar o outro do que qualificar a si mesmo.
Os órgãos ambientais e os ambientalistas jamais fizeram exigências que justificassem algo tão estapafúrdio como a afirmação de um ex-presidente da Eletrobrás que “… Há casos de regiões em que não podemos oferecer energia para não estressar os vagalumes“. No entanto, os ambientalistas sempre cobraram cuidado e responsabilidade dos órgãos ambientais e sempre exigiram que a construção das hidrelétricas observasse cuidados socioambientais, para evitar os incalculáveis danos das grandes barragens, tais como em Balbina e Tucuruí.
Ou que não se repitam as tragédias de dezenas de milhares de pessoas expulsas de suas terras e seus lares. Milhares ainda lutam para o justo reconhecimento das indenizações a que tem direito. Ou que, pelo menos, fossem reassentadas em terras produtivas.
Danos incalculáveis , que o setor elétrico jamais reconheceu, muito menos se desculpou.
Os imensos erros foram cometidos pelos eletrocratas e não pelos ambientalistas e pelos movimentos sociais. Os mesmos eletrocratas que produziram o EIA-RIMA fraudulento na hidrelétrica de Barra Grande ou os EIA-RIMAs repletos de erros nas UHEs Corumbá IV e do rio Madeira. Erros que os representantes do setor, convenientemente, deixam de citar em suas declarações.
Também omitem que o esforço para construir as hidrelétricas no rio Madeira, apenas ocorre para atender à indústria eletrointensiva de exportação. Nem pensar em atender à Dna. Mariazinha e o Seu Zezinho.
A indústria eletrointensiva ( menos de 500 empresas ) consome mais de 1/4 de toda a energia firme produzida no Brasil e tem um imenso poder de mando.
Tanto é que o programa Luz para Todos teve um desempenho pífio no norte do Brasil. Afinal, as multinacionais eletrointensivas não são atendidas pelo Luz para Todos. O resultado do Luz para Todos, muito aquém das metas, é, que a população no entorno do reservatório de Tucuruí apenas começou a conhecer a eletrificação a partir de 2005 e, se tudo correr bem, talvez seja totalmente atendida até o final de 2012.
Em Tucuruí, 50% da energia firme produzida é, contratualmente, destinada à indústria eletrointensiva, com destaque para a produção de alumínio e para a mineração.
Em termos de política industrial é necessário discutir a quem serve este subsídio, porque até hoje não ficou claro se a exportação, de alumínio plano, por exemplo, sequer compensa os subsídios concedidos
Em outra ponta da questão, é bom lembrar que as mega-obras, incluindo as grandes hidrelétricas, são uma “festa” para as empreiteiras e seus amigos.
As usinas hidrelétricas construídas no clima de “Brasil Grande”, ao longo da ditadura militar, foram e continuam sendo grandes desastres socioambientais. Hoje temos maiores conhecimentos técnicos e científicos para planejar e projetar novas hidrelétricas, mitigando ao máximo os seus impactos. No entanto, continuamos a ver projetos sem reais preocupações sociais e ambientais, como se o “espírito” vigente durante a ditadura ainda nos assombrasse.
Quando a sua insustentabilidade econômica, social ou ambiental fica evidente, o setor sempre apela para o “patriótico” dever de gerar energia. Como se esta pseudo bandeira patriótica a tudo justificasse. A ditadura militar pensava e agia como se assim fosse. Sabemos no que deu.
Voltando aos reservatórios, lembro que eles são de uso múltiplo e geração de energia é apenas um dos usos. O gerenciamento das bacias de suporte dos reservatórios deve ser feito por toda a sociedade. A implantação eficaz dos Comitês de Bacias e o desenvolvimento de programas de recuperação hidroambiental são fundamentais para garantir a eficiência dos reservatórios para todos os usos, inclusive garantindo o “estoque” para hidroeletricidade.
O ONS – Operador Nacional do Sistema Elétrico, em tese, gerencia os “estoques” dos reservatórios e a oferta firme do sistema, coordenando a transferência de energia no sistema integrado. O problema é que, como é costume no setor elétrico, isto é realizado sem qualquer transparência ou controle social.
Um bom exemplo deste gerenciamento sem transparência pode ser demonstrado no esgotamento do reservatório de Sobradinho, em 2007. O reservatório de Sobradinho tem cerca de 320 km de extensão, com uma superfície de espelho d’água de 4.214 km² e uma capacidade de armazenamento de 34,1 bilhões de metros cúbicos em sua cota nominal de 392,50 m, constituindo-se no maior lago artificial do mundo, garantindo assim, através de uma depleção de até 12 m, juntamente com o reservatório de Três Marias/CEMIG, uma vazão regularizada de 2.060 m³/s nos períodos de estiagem, permitindo a operação de todas as usinas da CHESF situadas ao longo do Rio São Francisco. O reservatório foi concebido para suportar até dois anos de estiagem até chegar a 10% de seu volume útil. Então como foi possível que fosse reduzido de 98,62%, em março/2007, para 16,52%, em dezembro/2007 – uma redução de 82,10% do volume útil em apenas nove meses. Nenhuma estiagem, por si só, explica tal redução, da ordem de 28 bilhões de metros cúbicos. Alguém mais, além de São Pedro, deve explicações para tal inacreditável redução.
Oficiosamente, soube-se depois, o reservatório operou em plena carga, “queimando” os estoques que seriam necessários na estiagem, para que o sistema transferisse energia para a Argentina, naquele momento, sob risco de um “apagão”. Bem, se isto for verdade, quem tomou esta decisão, com que base técnica e para atender a quais interesses?
Por falar nisso, que tal repotenciar as usinas mais antigas, isto é, modernizar o seu conjunto gerador, permitindo produzir mais energia com o mesmo volume de água. É mais rápido, barato e eficiente. Por que este projeto “dormita” em alguma gaveta a mais de 15 anos? A quem não interessa a repotenciação?
As questões de fundo exigiriam um espaço editorial muito maior do que posso me permitir. No entanto, tomo a liberdade, de sugerir alguns artigos em que estes temas são avaliados e discutidos de forma mais acurada.
Os diversos artigos do Rodolfo Salm, publicados aqui e no
Correio da Cidadania, são referência no tema e devem ser consultados e considerados.
Resumindo, os ambientalistas não são e nunca foram “inimigos” das hidrelétricas em si mesmas, mas somos e continuaremos a ser adversários de projetos sem responsabilidade social e ambiental, sem controle social e concebidos a partir de um modelo de desenvolvimento equivocado.
henriquecortez@ecodebate.com.br.