Ricardo Mendonça, de Canto do Buriti (PI)Pequenos agricultores que apostaram na mamona estão na miséria. A empresa-símbolo do biodiesel quase faliu. E Lula deixou de insistir tanto no assunto
O agricultor Antônio da Costa num pé seco de mamona em Canto do Buriti, Piauí. No alto do cacho, à direita, a praga que ataca a plantação. Ao lado, Lula e Miguel Rosseto na primeira colheita no assentamento Santa Clara, em 2005
No dia 4 de agosto de 2005, quando visitou Canto do Buriti, no sul do Piauí, para conhecer um assentamento chamado Santa Clara, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva alardeava otimismo com as perspectivas do uso da mamona para a produção de biodiesel. "O nosso petróleo, o petróleo verde da mamona, nunca acaba. Porque acaba um pé, a gente planta outro. Acaba outro, a gente planta outro", disse o presidente, ao discursar para agricultores pobres, empresários e políticos locais. Naquela tarde, Lula não economizou nas promessas: "A mamona pode ser uma das possibilidades para o povo pobre deste país melhorar de vida. E para mim, gente, não tem coisa mais orgulhosa do que ver um pai de família trabalhar, receber seu salário, pegar a mulher e os filhos, ir na bodega mais próxima e encher a casa de comida".
O assentamento Santa Clara, que também recebeu apoio do governo do Piauí, nasceu como o mais ousado projeto de plantação de mamona do país. Em 2004, o governo do Piauí cedeu uma área de 18.000 hectares para a empresa Brasil Ecodiesel fazer uma espécie de reforma agrária privada no local. A empresa distribuiu lotes de 8 hectares para 610 famílias, deu uma pequena casa para cada agricultor e assinou contratos de parceria. As famílias receberiam sementes, insumos, assistência técnica e um adiantamento mensal de R$ 250 por seis meses. Em troca, entregariam a colheita, que no final seria transformada em biodiesel. Após dez anos de trabalho nesse regime, receberiam a posse definitiva da terra.
Quatro anos após a visita presidencial, a realidade do assentamento é completamente diferente daquela idealizada por Lula. A região é frequentemente apontada como palco de denúncias graves, como exploração de trabalho infantil, prostituição, desmatamento e produção ilegal de carvão. Hoje, cerca de 600 famílias continuam assentadas, mas a maior parte dos terrenos está ociosa. As plantações de mamona produziram bem abaixo do esperado. A Brasil Ecodiesel estimava 1.200 quilos por hectare, mas o resultado médio nunca passou de 400 quilos por hectare. Atrasos nas plantações, má qualidade das sementes, falta de apoio técnico e pragas são as explicações mais ouvidas. Aos poucos, a cultura foi sendo abandonada. Hoje, os únicos pés visíveis de mamona são aqueles que nasceram por acaso, no meio do mato, por obra da natureza.
"O que era apresentado como um pioneiro projeto econômico e de inclusão virou um grande problema social", diz Dionísio Carvalho, da Rede Ambiental do Piauí, entidade que acompanha o assentamento desde o início. Muitos agricultores reclamam que não podem sair do local, sob o risco de perder o direito à terra. Alguns dizem que chegam a passar fome. Antônio Alves da Costa, conhecido como Neguinho, é um deles. "Uma vez por mês, saio nesse mato para caçar paca ou tatu", diz, ao lado de um pé seco de mamona. "O rapaz do Ibama já disse que é errado, que não pode. Eu respondi que errado é ver criança passando fome dentro de casa."
Valentim Moreira, de 53 anos, tem problemas parecidos. Ele divide a casa de um dormitório, uma cesta básica e R$ 160 por mês (o adiantamento agora é pago por todo ano) com outras sete pessoas. Dos 8 hectares, usa apenas 1, para subsistência. A renda familiar per capita inferior a R$ 0,70 por dia coloca o grupo abaixo da linha da indigência. Num país que passou quase uma década colecionando notícias sobre a redução da pobreza, Valentim diz ter caminhado no sentido oposto, o do empobrecimento: "O pagamento de R$ 160 chega com dois, três meses de atraso. A cesta atrasa 20, 30 dias. Para pegar o dinheiro na cidade, gasto R$ 7 para ir e R$ 7 para voltar. Na última vez, cheguei lá e só tinha R$ 80. Está cada vez pior", afirma.
Algumas pessoas do local sobrevivem com o Bolsa Família. Outras, como a dona de casa Claudenir Barbosa, grávida do terceiro filho, não conseguem explicar por que foram inscritas no programa, mas não recebem o benefício. "Estou inscrita desde 2006. Eu ligo lá todo mês, e eles dizem para esperar mais um pouco, que só falta liberar o dinheiro, mas nunca sai", diz.
Lançada a R$ 12, em 2006, a ação da Brasil Ecodiesel custava R$ 0,83 na semana passada. Uma queda de 93%
O aspecto mais visível da miséria é o trabalho infantil. Há três semanas, ÉPOCA flagrou crianças com enxada na mão tapando buracos na danificada e empoeirada estrada que dá acesso ao local. Trabalham sob o sol, sem nenhum tipo de proteção, em troca de esmolas jogadas pelos caminhoneiros. "Tem dia que dá para ver mais de 30 crianças aqui", diz o agricultor José da Costa Amorim, para quem o assentamento "está falido". A tia de uma menina de 5 anos e de um garoto de 14 fotografados pela reportagem justifica assim o trabalho infantil: "A gente não gosta, né? Mas, se não tapar buraco, não come".
A explicação dos assentados, do governo e das empresas para todos esses problemas é a mesma: o até agora retumbante fracasso da mamona como matéria-prima para a produção de biodiesel. Apesar do apoio governamental, do interesse empresarial, da abundância de mão de obra, da eficiência energética da semente e do clima favorável, a mamona não se mostrou viável naquele que talvez seja o mais determinante aspecto do mercado: o preço. Fazer biodiesel com mamona sai muito caro.
Para os especialistas do mercado de biodiesel, um dos fatores que inviabilizam a mamona, paradoxalmente, é a qualidade de seu óleo, que tem aplicação nobre no setor químico. "A mamona ainda é cara por três motivos: baixa produtividade, baixa produção e demanda forte para outras finalidades, como produção de cosméticos, tintas e até combustível de foguetes", diz Arnoldo Campos, coordenador do programa de biodiesel do Ministério do Desenvolvimento Agrário.
A aposta do governo na mamona começou em 2004, com o lançamento do Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel. A ideia era criar uma cadeia produtiva que incentivasse a agricultura familiar e, ao mesmo tempo, fosse livre das variações de preços das commodities, como a soja, determinadas pelo mercado externo. Para garantir mercado, o governo estabeleceu a obrigatoriedade da adição de um porcentual mínimo de biodiesel ao diesel convencional vendido nos postos. Começou com 2% e hoje está em 4%. Além disso, criou benefícios econômicos para as usinas. Quem compra mamona de pequeno produtor ganha acesso aos leilões da Agência Nacional do Pelóleo (ANP), o único espaço para vender biodiesel à Petrobras.
Como o biodiesel da mamona continuou caro, as usinas começaram a atuar como meros atravessadores. Compram a mamona dos pequenos agricultores para garantir presença nos leilões da ANP, mas não a aproveitam para fazer biodiesel. É mais rentável produzir biodiesel com soja e revender a mamona à indústria química. Hoje, todo o mercado funciona assim. Segundo o governo, 71% do biocombustível é produzido a partir da soja. O restante, a partir do algodão e do sebo animal.
O desencanto com a mamona é tamanho que a área total ocupada pela cultura deverá cair neste ano em relação a 2008, segundo as estimativas da CONAB. No ano passado, em todo o país, foram usados 162,7 mil hectares para a mamona. Neste ano, a estimativa é de 156,6 mil hectares. De acordo com um relatório sobre o tema da ONG Repórter Brasil, que recebeu patrocínio internacional para investigar o setor, a explicação pode estar na falta de credibilidade do programa. "A catastrófica atuação da Brasil Ecodiesel nos últimos anos, com atraso nos pagamentos, quebra de contratos, abandono da produção, entre outros motivos, assustou muitos agricultores, que abandonaram a cultura", diz o texto.
Os problemas recentes do mercado da mamona estão diretamente associados à história da Brasil Ecodiesel. Dona de seis usinas em cinco Estados, ela foi a empresa que mais apostou no uso da mamona para a produção de combustível. Inaugurada em 2003 pelo empresário Daniel Birmann, a empresa acabou se transformando numa espécie de símbolo do programa e xodó do presidente Lula. Além de visitar o assentamento Santa Clara, no Piauí, Lula participou de quatro inaugurações de usinas da Brasil Ecodiesel pelo país. Antes de completar três anos, porém, a empresa passou a enfrentar sérios problemas societários e financeiros que quase a levaram à falência.
As dificuldades societárias começaram quando Birmann foi inabilitado pela Comissão de Valores Mobiliários para exercer cargos em companhias abertas. A penalidade, em 2005, ocorreu por causa de irregularidades na falência de outra empresa de seu grupo. Birmann vendeu sua participação para uma offshore (empresa no exterior) chamada Eco Green, mas a falta de informações sobre os controladores da offshore gerou desconfianças. No mercado, levantaram-se suspeitas de que por trás da Eco Green estava o próprio Birmann. Essa foi uma das explicações para o decepcionante resultado obtido na abertura de capital da Brasil Ecodiesel, em 2006. Os papéis da empresa despertaram baixo interesse.
A situação da Brasil Ecodiesel, de acordo com o diretor financeiro da empresa, Eduardo de Come, se agravou no fim de 2007. Num leilão da ANP, a Brasil Ecodiesel se comprometeu a entregar 170.000 toneladas de biodiesel no semestre seguinte a R$ 1,80 o quilo. No começo de 2008, porém, o preço da soja disparou, como resultado da crise internacional. Na hora de entregar as 170.000 toneladas de biodiesel, o custo de produção já chegava a R$ 3 o quilo. Quanto mais a Brasil Ecodiesel vendia, mais se afundava. "A empresa consumiu capital de giro, se endividou e não conseguiu entregar todo o contrato", diz De Come. "Por fim, veio a crise do crédito, que nos levou a uma reestruturação."
O tamanho do tombo da Brasil Ecodiesel pode ser medido pela variação do preço de suas ações desde o lançamento. No fim de 2006, cada ação foi oferecida por R$ 12. Na semana passada, estava cotada a R$ 0,83, uma desvalorização de 93%. No ano passado, o mercado foi tomado por especulações, segundo as quais o governo cassaria a licença da Brasil Ecodiesel de participação nos leilões da ANP. Seria a falência, mas não ocorreu. Em julho, a empresa terminou a reestruturação. O controle foi pulverizado. Entre os maiores acionistas atuais, está o fundo americano Zartmann, a Eco Green e o empresário Silvio Tini, conhecido no mercado por ser especialista em comprar ações de empresas com dificuldades.
Sobre os problemas no assentamento Santa Clara, Eduardo de Come reconhece que a empresa deixou de fornecer sementes para o replantio da mamona, mas afirma que não pretende abandonar o projeto. "Sentamos com os agricultores com antecedência e anunciamos que iríamos manter o investimento no menor nível possível", diz. "Ainda assim, gastamos US$ 3,5 milhões por ano no local para manter uma escola, um ônibus, um posto de saúde, as cestas básicas e o adiantamento mensal de R$ 160 por família."
O secretário de Relações Internacionais do Piauí, Sérgio Vilela, ex-titular da Agricultura, defende a Brasil Ecodiesel das denúncias de produção ilegal de carvão. "Eles instalaram fornos. Mas o carvão produzido era resultado do desmatamento necessário para a abertura de áreas para o plantio. A empresa errou no atraso do envio de sementes e na falta de preparo da terra."
Vilela defende uma intervenção estatal para tirar o assentamento da miséria: "A reforma agrária privada parecia inovadora, mas falhou. O Estado deveria reassumir a área com um programa de reforma agrária convencional porque a população não pode ficar abandonada".
Por causa do fracasso da mamona, o governo resolveu dar uma nova orientação ao programa do biodiesel e aumentou a participação da Petrobras no setor. Colocou o ex-ministro do Desenvolvimento Agrário Miguel Rosseto na presidência da Petrobras Biocombustível e, em menos de um ano, inaugurou usinas na Bahia, no Ceará e em Minas Gerais. Há duas semanas, Lula disse que orientou Rosseto a criar uma empresa de biodiesel em cada Estado do Nordeste. Nos discursos, porém, seu entusiasmo com o assunto parece ter diminuído. Em 2005, Lula citou a palavra "mamona" 92 vezes. No ano passado, a mamona apareceu na boca do presidente em 16 oportunidades. Neste ano, até agora, Lula só a citou em 13 ocasiões, a maioria com ressalvas. O "petróleo verde" secou.